sábado, 27 de julho de 2013

A desgraçada da internet

A desgraçada da internet - Roberto Barbato Jr

Quando digo que odeio a internet é porque ela arruinou minha vida. Acho que esse negócio de rede virtual é coisa do capeta, de quem pretende a desgraça alheia. Não vou me estender nesses comentários porque a raiva não leva a nada. Mas, também, não posso deixar de contar minha história. Se ela é triste? Não. Nem triste, nem gozada. Talvez por isso seja melhor você não perder seu tempo. Quem avisa, amiga é.

No dia em que me pediu em casamento, o Alcir disse que conhecia um negócio revolucionário, que nele iria investir fundo, a ponto de garantirmos o nosso sustento. Eu poderia parar de dar minhas aulas particulares. Em pouco tempo, estaríamos com a vida organizada e iríamos providenciar nossos filhos. Minha família relutou em aceitar que eu me casasse com um sujeito como ele, meio esquisito, perdido no mundo e desapegado das coisas do espírito.

Seis meses antes da festa, ele apareceu na casa dos meus pais com um aparelho que ninguém imaginava existir. Era um vídeo cassete. Fez a ligação dos fios na televisão, conectou tudo o que era preciso e lá enfiou uma fita do “O homem que queria ser rei”. Assistimos ao filme como se estivéssemos no cinema. Antes de ir embora, o Alcir vaticinou: “Ainda vamos ganhar muito dinheiro com isso”. Ele estava falando da locadora de filmes que pretendia abrir.

No mês seguinte, fez empréstimo no banco, alugou um imóvel, encheu os cômodos de prateleiras, contratou uma funcionária, a Késia, e mandou vir de não-sei-onde as fitas de VHS. A locadora ficou completa, com filmes de todos os gêneros, inclusive de sexo explícito. Naquela época, a aquisição de aparelhos de vídeo cassetes ainda era algo fora da realidade da maioria da população. Poucas famílias conseguiam fazer uma importação ou tinham dinheiro para bancar o alto preço proposto pelas lojas nacionais especializadas em som, áudio e vídeo. Mesmo assim, o movimento da locadora era bom e prometia aumentar.

Logo nos primeiros meses, Alcir teve um lucro interessante e disse que eu poderia acabar com minhas atividades docentes. É bem verdade que ele desdenhava do meu ofício. Dizia amiúde que eu ensinava uma meia dúzia de números a crianças quase débeis mentais, mas aquilo não me ofendia. Em face da possibilidade concreta de largar as aulas, liguei para cada mãe de aluno e comuniquei que não continuaria zelando pela educação de seus filhos. Conforme suspeitava, minha atitude não gerou nenhum desconforto. Minhas aulas não fariam falta alguma. Afinal, sempre fui uma professora medíocre.

Comecei a me dedicar de corpo e alma à “empresa” (ele gostava que a locadora fosse tratada dessa forma). Assistia aos filmes, esboçava as sinopses dos enredos e, uma vez aprovadas por ele, as datilografava em pequenas fichas que eram inseridas nas estantes temáticas. Também ajudava-o a rebobinar todas as fitas que eram devolvidas pelos clientes menos zelosos. Com o passar do tempo, passei a atender no balcão e a colaborar na contabilidade de uma empresa que ia de vento em popa.

Três anos depois do casamento, exatamente como planejado, nasceu Gabriela, nossa filha. No ano seguinte, veio o Elpídio, cujo nome fora sugerido pelo Oscar, um contrabandista que trazia umas máquinas esquisitas do Paraguai para o Alcir. Eram os tais dos computadores. Eu não via graça nenhuma neles, mas me disseram que o futuro estava ali, diante de nós.

Durante quinze anos, nossos negócios prosperaram com toda força. É claro que, vez por outra, tínhamos crises financeiras. Entretanto, com a dedicação que devotávamos à locadora, tudo se resolvia.

Com a falsa justificativa de que mirava o futuro, Alcir começou a investir em computadores. Comprava um atrás do outro. Primeiro, eram máquinas robustas, lentas. Depois, vieram as mais sofisticadas. Aquela tecnologia evoluía exponencialmente. Um dia, durante o almoço, falou que já tinha gente que se comunicava por meio de terminais computadorizados. Era a tal da internet. À medida que crescia seu interesse pela informática, reduzia drasticamente sua atenção à locadora. Tendo ciência da minha responsabilidade, acabei assumindo o negócio sozinha: fazia o atendimento, comprava fitas, negociava estoque antigo e fazia a contabilidade. Gabriela e Elpídio, embora estivessem mocinhos, não trabalhavam. Eu queria que tivessem uma adolescência saudável, longe do trabalho e próxima dos estudos.

Com o surgimento dos DVDs, tudo mudou. Tive que repensar a estratégia comercial da locadora. Qualquer pessoa que quisesse sobreviver naquele ramo, teria que investir na substituição do acervo de VHS pela nova mídia. Acabei fazendo negócios com o Oscar. Comprei títulos importados que ainda não haviam chegado ao Brasil e vendi à clientela mais sofisticada. Eu sabia quem queria o quê, e tinha boas relações com os cinéfilos de plantão. Aos poucos, consegui trocar todo o estoque das fitas VHS. Nossa locadora foi a primeira na cidade a ter um acervo cem por cento digital.

Os DVDs foram capazes de manter a locadora com movimentação extraordinária. Eram fantásticos e não nos causavam os problemas típicos das antigas fitas. Cheguei a duvidar que o homem fosse capaz de inventar uma tecnologia ainda mais interessante e barata que eles. Nem me preocupei com isso.

Cada vez mais eu ganhava intimidade com o sucesso empresarial. Por outro lado, meu casamento estava uma merda. Alcir não fazia sexo comigo e, pior que tudo, pouco conversava com a família. Ia dormir com o dia claro e acordava no final da tarde, sempre em desacordo com o fuso horário de gente normal. Em pouco tempo, percebi que a causa dessa mudança de hábitos se devia à internet. Descobri, então, as salas de bate papo e, com elas, a existência da Soraia.

A Soraia, segundo me disse sorrateiramente o Oscar, devia ser muito gostosa. Todavia, não era nada mais do que uma paixão virtual e eu não precisaria me preocupar. Melhor ser traída por uma mulher virtual do que por uma puta qualquer, ele me disse. A Soraia era inofensiva, quase inexistente. Enquanto Alcir ficava de bate papo com ela madrugada afora, eu ralava como uma doida.

Um dia, no meio da tarde, acometeu-me uma enxaqueca. Deixei a Késia tomando conta da locadora e fui pra casa. Quando cheguei perto do meu quarto, pela fresta da porta flagrei os dois – ele e a Soraia, é claro – transando na cama. Pois é, a Soraia, que até então era virtual, estava ali, diante dos meus olhos, dando para o meu marido. O que mais me doeu não foi a traição, mas o fato de o Alcir nunca ter me fodido daquele jeito, com aquela volúpia toda.

Corri até a despensa e peguei o três oitão que guardávamos para alguma eventualidade. Próxima do quarto, empurrei em silêncio a porta e mirei bem a cabeça dele. Não tive coragem de atirar. Abaixei a arma e mandei os dois embora de casa. Sabe aquela cena patética de novela pastelão? Pois é, o Alcir saiu pulando da cama de pau duro, enquanto a Soraia tentava cobrir os peitos com o lençol da minha cama. Não achei graça alguma naquilo. Enquanto a cena acontecia, eu chorava feito criança.

O pastelão acabou com a entrada do Elpídio em casa. Foi tudo muito constrangedor. Ele teve a sensibilidade de esperar a situação acalmar para me dar uma notícia: nos Estados Unidos o mercado de DVDs estava ameaçado pelo repentino crescimento da comercialização do Blu-ray. Eu sabia o que me esperava: teria de renovar o acervo da locadora novamente. Daquela vez, contudo, não tive nenhum êxito. Antes mesmo do Blu-ray emplacar, começou a moda de baixar filmes da internet. A maldita internet – ela, de novo – faria outro estrago na minha vida. A clientela foi rareando rapidamente e a locadora nunca mais foi a mesma. Meu faturamento desmoronou, até que percebi a inviabilidade da empresa.

Em menos de um ano, dei baixa na junta comercial, com o caixa zerado e, felizmente, sem nenhuma dívida. A única coisa que fiz questão de guardar foi a velha fita do VHS “O homem que queria ser rei”. Quando tenho saudades daquela época, assisto um pouco do filme num vídeo cassete que resiste bravamente ao tempo, e quase morro sufocada de tanta nostalgia.

Nunca mais vi ou falei com Alcir. Gabriela casou-se e hoje reside na Suíça, com um gerente de banco transnacional. É ele que deposita algum dinheiro na minha conta todo mês. Elpídio juntou-se com a Késia (eles viviam se pegando no quartinho do estoque antigo da locadora) e se mudaram para Porto Alegre em busca de sonhos. Pois é... Meus filhos imploram para que eu mantenha contato com eles (veja se pode!) pela internet. Quando vêm com essa ideia, nem sei o que dizer.

O que sei é que, no sábado passado, encontrei um sujeito na padaria. Enquanto ele tomava seu café da manhã, puxei assunto e contei toda minha vida, sem nenhuma vergonha. Ele me disse que tem um blog e que não se incomodaria de publicar uma história tão infame. Pra mim, tanto faz. O blog também fica na internet...


Um comentário:

William Lial disse...

Roberto,

Muito bom! Boa dose de humor com o trágico da vida moderna, e muito bem escrito. Vou compartilhar na minha página do Facebook - na internet, rs!

Um abraço!