segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Nunca chorei o maltrato da vida

Nunca chorei o maltrato da vida - Roberto Barbato Jr

Nunca chorei o maltrato da vida. Não tinha dinheiro pra comprar coca-cola, cortar cabelo e nem comprar tênis. Sorvete e cinema, nem pensar. A escola era pública e o material, emprestado. Recebia os livros todos riscados, amassados. Não dava pra reclamar. Era a única maneira de aprender alguma coisa. O uniforme, minha mãe comprava sabe lá Deus com que sacrifício. Eu não gostava de estudar, mas também não tinha outra opção. Meu pai só existiu na minha imaginação. Ele é um daqueles pais famosos que grande parte dos brasileiros tem. Sim, é aquele sujeito que saiu para comprar cigarro e nunca mais voltou. Felizmente, minha mãe sabia que o cigarro era uma desculpa e jamais alimentou a ilusão de que o safado voltaria. Não voltou.

Além da precariedade material, sempre fui feio. Quando digo feio, quero dizer feio mesmo. Coisa séria. Feio a ponto de as meninas fazerem cara de enjoo quando me viam. Feio e pobre, não teria chance nenhuma com ninguém. Enquanto a meninada se vestia para o cinema, eu ficava em casa, imaginando um jeito de vazar a roleta, sem pagar nada. Depois que passasse pela porta, a escuridão da sala me daria guarida. Ninguém me acharia. E, convenhamos, nem seria interessante o lanterninha correr atrás de um menino como eu. Se me achasse no escuro, certamente tomaria um susto.

Durante algum tempo tive prática em surrupiar a broinha de milho da padaria. Era bem fácil. Bastava entrar calmamente, ir até o balcão e pedir dois pães franceses. Quando a moça se virava para pegá-los, já era: estava na rua dando a primeira mordida. Não era bonito fazer isso. Eu não contava para ninguém, pois não queria que me achassem um cara esperto. Furtar a broinha não era questão de esperteza, mas de sobrevivência. E disso eu sempre entendi muito bem.

Percebi que o mundo não me daria nada de graça. Teria que brigar pra conseguir uma vida mais ou menos digna. É claro que eu nunca acreditei naquela conversa de que o trabalho dignifica o homem. Se tivesse um pouco de habilidade para o crime, tentaria o sucesso fácil, alheio ao trabalho empenhado. Pouco se me daria a tal da dignidade. Prefiro o dinheiro. A merda é que até nisso eu fui cagado. Pobre e feio, deveria ao menos ter vocação para o afano, a tungada perfeita, tal como conseguia com a broinha. Mas, qual o quê! Virei um bundão. Ao sinal do menor temor, já me via gaguejando, tremendo, titubeando nas ações.  

Preferi a submissão, é claro. Pra um sujeito como eu, é mais fácil a subserviência. Bastaria algum estudo e um pouquinho, só um pouquinho, de sorte. Arranjando um empreguinho medíocre, bem me satisfaria. Ficaria quieto, recebendo ao final do mês o suficiente pra parar em pé, de estômago cheio. Mas nem tudo foi tão fácil.

Quando a Mel me conheceu, anunciou o estrago que faria na minha vida. Teríamos filhos, muitos filhos. Ela me seduziu, engravidou na primeira transa e foi taxativa ao dizer que seria uma mãe muito zelosa. Por zelosa, eu entendi dedicação integral aos nossos filhos. Isso me encheu de orgulho. Acontece que eu sou pobre e feio, mas não sou burro. Logo saquei que teria de trabalhar pra garantir tanto zelo da parte dela. Então, vieram a Amália, a Amélia e a Emília (antes que alguém pergunte, foi ela quem escolheu os nomes das meninas). Paramos por aí.

Com essa prole toda, tive que mudar de emprego pra ganhar mais. Meu projeto de só parar em pé, bastando ter o estômago cheio, caiu por terra. O dinheiro precisava render e eu, também. Com sacrifício, criamos as meninas. Eu trabalhando, e a Mel cuidando delas.

O tempo se passou. Continuei feio e pobre. As meninas se casaram e a Mel arrumou um amante. No dia que descobri a traição, matei os dois. Como não tinha dinheiro para contratar um bom advogado, peguei um rábula que nem sabia direito o que era homicídio privilegiado. Hoje estou aqui cumprindo pena com mais oito na minha cela. Amália, Amélia e Emília nunca vieram me ver e, provavelmente, jamais virão. Dizem que a progressão de regime tardará a chegar. Não faço a menor ideia do que farei quando sair daqui, mas, honestamente, espero morrer antes disso. Agora, tenho que receber uma visita. Um sujeito quer me ver. Diz que é meu pai.

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